A poética na realidade semiótica

Lucas Rafael
7 min readFeb 17, 2022

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um poste elétrico vermelho se destaca em contraste com um céu de intenso azul e nuvens brancas. Cortando a imagem, fios se conectam ao poste e do poste vão em todas as direções.

A poética é um elemento sempre presente na formação da realidade do mundo (e eu juro que essa frase não é o início de uma redação do enem). Entendendo poética como Aristóteles a traz em grego antigo: poiésis não é uma palavra que designa necessariamente a produção artística ou as imagens estéticas, que atraem os sentidos, mas trata-se de toda e qualquer tipo de produção. Para Aristóteles, toda poética é uma imitação, uma representação de algo que se oculta pelo que representa. Apesar das diferenças de pensamento no que tange a um mundo ideal natural de Platão e Aristóteles, é possível enxergar no segundo a inspiração platônica de imaginar que tudo aquilo que é criado possui um aspecto mimético com relação a um objeto natural, de divindade irreproduzível pelas mãos de um artífice humano.

As construções poéticas então são imitações, sejam estas histórias, pinturas, obras de construção civil. Vamos nos deter às histórias, que Aristóteles percebe serem compostas de três partes, nomeadamente: princípio, meio e fim. Ser todo, para Aristóteles, é ter essas características, que culminam no que chamamos, ao falar de histórias, em três atos. Os três atos tem um primado ontológico sobre qualquer estrutura de história, sendo a base sobre qual é erigida a Jornada do Herói, estrutura mítica presente em tantas culturas e sociedades diferentes, reiterada de múltiplas maneiras a um ponto que Joseph Campbell percebeu-a como um fenômeno que decidiu chamar de monomito, o que lembra-nos da famosa frase de Willa Cather em O Pioneers!: “Existem apenas duas ou três histórias na humanidade e elas se repetem de forma tão insistente como se nunca tivessem acontecido antes”.

Que as histórias possuem, em seus esqueletos estruturais, formas que ressoam entre si de forma a toda história ser relacional a uma próxima, está estabelecido. As histórias contam as histórias de quem as contam e, mesmo que em lugares diferentes do mundo, em diferentes contextos, possuem essa similaridade. Essa estrutura triádica das histórias não é uma regra que deva ser seguida, é importante ser notado, mas sim um princípio que guia a ação de contar uma história. é algo mais primordial do que convencionado como lei. Porém, entendendo as histórias como pilares fundamentais da formação cultural, é possível entender que haja algo em comum à humanidade que permite essa amplificação de uma estrutura de três atos em tudo o que é existente? Primeiramente, é necessário entender do que são compostas essas histórias, e de que forma toda construção poética pode se configurar em uma história que acontece diante de um alguém que seja.

Proponho que possamos olhar as criações poéticas e enxergá-las como fractais de mandelbrot, aquele no qual as curvas maiores são formadas por curvas semelhantes em escalas menores, formando o que pode ser chamado de auto-similaridade. A estrutura triádica das criações poéticas, dividida em princípio, meio e fim, reflete a estrutura triádica dos elementos que a compõem: a saber, os signos. O signo como é entendido pela semiótica peirceana é, em essência, uma tríade composta por um objeto, um representamen e um interpretante (SANTAELLA, 2005). O processo de significação, a semiose ou processo semiótico, acontece quando um objeto é representado por um representamen, gerando um interpretante, que é o efeito do signo em uma mente. Eco (1989) defendia que esse processo é infinito, acontecendo em sequência, na qual o interpretante vira representamen e o representamen torna-se objeto, etc. É importante notar que os signos semióticos não são restritos à linguagem como entendemos em sentido de língua escrita, falada, gestual ou mesmo no sentido de linguagem como idioma, mas sim uma linguagem que indica a conexão fundamental entre todas as coisas, como pequenos processos comunicacionais que sustentam a realidade. Peirce entendia a linguagem como esse elemento primordial, a lógica que sustentava a natureza. Existe outro autor, que, assim como Peirce, leu Aristóteles e pretendeu reconstruir um caminho da filosofia que havia sido esquecido. Heidegger observou no lógos aristotélico um sentido de fala, que nada tem a ver com exprimir sons pela boca, mas sim com discurso (HEIDEGGER, 2007), um discurso que permite enunciar as coisas e, nestas, criar relações. Assim como a semiótica é, para Peirce, a lógica, a lógica para Heidegger consiste neste lógos que representa a capacidade de comunicação que arranja as coisas, é o que permite ao ser que seja compreendido.

Assim, essa fala, “a disposição conjuntural que chamamos de ‘linguagem’” (HEIDEGGER, 2007, p. 129), existe em uma capacidade que não é apenas humana, pois conectar as coisas umas às outras não é um processo exclusivamente humano, mas um processo que subsiste em toda e qualquer relação entre os seres, sejam animais, minerais, vegetais ou de qualquer outro domínio. Ele chega a afirmar que:

A amabilidade do vale e a hostilidade da montanha ou do mar em ira, a sublimidade das estrelas, a absorção da planta e o aprisionamento do animal, a velocidade calculada das máquinas e a severidade da ação histórica, o frenesi controlado do trabalho criado, a fria braveza do questionamento que sabe, a sobriedade endurecida do trabalho e a discrição do coração — tudo isto é linguagem. (HEIDEGGER, 2009, p. 140)

Essa compreensão de lógica como linguagem entre todas as coisas permite perceber que o jeito que a onda é retratada contra as rochas de um penhasco em uma pintura é uma representação de como essa onda se comunicou contra as rochas na realidade. O contar sobre as coisas é uma espécie de representação de como as coisas aconteceram na natureza. O artista é como o autor de romances que, como Benjamin (1985) defendia, tem o poder que vem do dom de contar as coisas da vida, da capacidade que o romance tem de comunicação. Ele afirma que o narrador é aquele que consegue observar as conexões cotidianas a uma certa distância que permite a essa observação enxergar o que há de sublime na mais banal das ações. Assim, o narrador percebe essa conexão na vida real e a ressignifica para a obra de arte.

Quando uma história é contada, é porque a história aconteceu em algum lugar de forma natural e o narrador a expressa através de uma nova construção poética, utilizando-se de toda a potência que a linguagem lhe permite. Se a onda não existiu, mas existe sua representação, há uma realidade da onda através da linguagem, o que Susan Haack (2013) define como o seu realismo inocente: uma realidade multiversal na qual é possível a coexistência de todos os nossos sistemas simbólicos, linguagens e criações artísticas, um mundo que comporta ao mesmo tempo Batman e Dom Quixote, além de Bill Finger e Cervantes. O realista inocente enxerga a linguagem como produtora da realidade das coisas que não existem materialmente, mas existem através do que se fala e se escreve sobre elas. Neste momento, lembremo-nos das palavras de Compagnon (1999, p. 133): “a referência pressupõe a existência; alguma coisa deve existir para que a linguagem possa referir-se a ela”. O realismo inocente segue uma compreensão próxima a esta sobre a relação entre linguagem e existência. Haack defende um multiverso que é multi-layered, ou seja, dividido em várias camadas. Não é porque Batman não existe materialmente que nossa linguagem seja incapaz de referir-se a ele e, como ela de fato é capaz, Batman existe em alguma das camadas que formam a realidade do nosso mundo.

A realidade adquire, então, por conta dessa influência grande de produções fictícias e de sistemas simbólicos, um tom de representação, de referência àquilo que pode ser encontrado na natureza. É a realidade que se constrói semioticamente através dos livros que escrevemos, dos quadros que pintamos, da arte à qual somos expostos e de qualquer tipo de processo de significação. Peirce chega a afirmar que “é muito mais verdadeiro que os pensamentos de um escritor vivo estão em qualquer cópia impressa de seu livro do que estão em seu cérebro” (PEIRCE, CP 7.364), compreendendo a continuidade que existe entre autor e obra através da linguagem. Se hoje é possível entender Hugo ou Dostoiévski, é porque eles são trazidos até nós pela linguagem.

Mas se os objetos da natureza são representados gerando interpretantes, que geram novos objetos e novas representações… qual o fim dessa semiose? Aristóteles faz referência direta a um fim: “é aquilo que aparece depois de outra coisa, necessariamente ou na maior parte dos casos, e a que não se segue nada” (Poética, 1450b). O que nos reserva o terceiro ato da linguagem, se estamos atualmente no ato do meio, o da representação?

Talvez a resposta esteja justamente na realidade. Assim como a personagem Sumire percebe, em Minha Querida Sputnik, subitamente acordamos para uma realidade em que “é tudo semiótico demais” (MURAKAMI, 2008, s. numeração). A realidade que construímos e estamos sempre construindo através da linguagem talvez seja o fim da nossa história, o nosso sempre-possível terceiro ato. Talvez, assim como na semiose, na qual o interpretante, o terceiro elemento da tríade que forma o signo, transforma-se em um representamen do próximo interpretante, nossa história com a realidade esteja atrelada à nossa eterna construção da realidade e, assim que terminamos de construir, voltamo-nos a mais poéticas. Dessa forma, tudo aquilo que criamos através da linguagem é incorporado à realidade de nosso mundo, em alguma das camadas onde é permitida sua existência, acontecendo nessa semiose infinita.

REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS

SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 2005.

ARISTÓTELES. Poética. 3ª Edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.

PEIRCE, Charles. The Collected Papers of Charles Sanders Peirce. Vol. I-VIII, C. Hartshorne, P. Weiss & A. Burks (eds.). Cambridge, MA: Harvard University Press, 1931- 1958.

ECO, Umberto. Sobre Espelhos e outros ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989

HEIDEGGER, Martin. Metafísica de Aristóteles Θ 1–3: Sobre a essência e a realidade da força. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2007.

HEIDEGGER, Martin. Logic as the question concerning the essence of language. Nova York: State University of New York Press, 2009.

CATHER, Willa. O Pioneers!. Nova Zelândia: The Floating Press, 2009.

HAACK, Susan. The real, the fictional and the fake. In: SpazioFilosofico, n. 2013–12. Disponível em: <https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2321852>. Acesso em 26 out. 2021.

MURAKAMI, Haruki. Minha Querida Sputnik. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: UFMG, 1999.

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